segunda-feira, 12 de julho de 2010

RELIGIÃO, CIÊNCIA E TECNOLOGIA

Nota sobre o 22º Congresso Anual da Soter

Ceci Baptista Mariani

O Congresso da Soter 2009, acontecido nos dias 06, 07, 08 e 09 de julho colocou em pauta a relação “religião, ciência e tecnologia”, tema que, como indicou o Prof.Eduardo Cruz na conferência de abertura, não só procura abordar mais um tema de interesse para a teologia latino-americana, mas recupera questões fundamentais, a saber, a discussão sobre a relação fé e razão, que ganha novos contornos num mundo em que a razão é fundamentalmente pragmática e tecnicista. O desafio proposto pelo congresso foi refletir sobre a questão da razão tecnológica e a relação entre humanismo e tecnologia.

O Congresso foi estruturado segundo um esquema constituído basicamente de três eixos: (1) Humanismo, ciência e tecnologia; (2) Desafios epistemológicos: interdisciplinaridade, transdisciplinaridade e articulação dos saberes; (3) Ciência, religiões e futuro do planeta: desafios para a fé. Do ponto de vista metodológico, optou-se por uma estratégia que privilegiou o diálogo interdisciplinar com o pensamento que se estrutura fora dos territórios estritamente teológicos. Às conferências proferidas pelos convidados externos, se seguiram reações de teólogos e teólogas que, tendo acolhido a provocação, davam ao problema uma contribuição em nome da teologia.

A primeira provocação veio do lugar da física e foi feita pela Profa. Elaine M. P. de Andrade a partir do texto “Ciência, Tecnologia e Humanidades” enviado pelo Prof. Luiz Pinguelli Rosa, professor e pesquisador na Pós-graduação em Epistemologia e História da Ciência e da Técnica na UFRJ. Para esse autor, segundo a Profa. Elaine, uma perspectiva que tende a tratar tecnociências e humanidades como duas culturas separadas é fruto da influência da física, mais especificamente, do determinismo newtoniano na visão de mundo moderna. Para ele, um novo paradigma geral da Ciência, nascido sob a influência de uma aproximação entre a física e a biologia, poderá tornar-se hegemônico e ser incorporado em uma nova visão de mundo. O restabelecimento de pontes entre essas culturas, tecnociências e humanidades, supõe, para além da pretensão de eleger o caos e a complexidade como um novo paradigma geral substituto do determinismo de base newtoniana, uma análise crítica das relações entre ciência, história e sociedade.

O teólogo Márcio Fabri dos Anjos, trouxe como contribuição a essa reflexão sobre humanismo, ciência e tecnologia, a proposta cristã em termos éticos que, como alternativa ao pós-humanismo projetado pela constatação da ambigüidade que as tecnociências representam no poder criativo do humano sobre si mesmo e sobre seu ambiente, pós-humanismo que profetiza por um lado a perda do controle tecnológico e a conseqüente autodestruição ou a ilusória confiança na tecnologia como solucionadora das fragilidades humanas, a proposta cristã que assume o amor como princípio ético, ou seja, como critério para a busca do dever ser no fazer tecnológico. O amor é no mínimo uma luz, propõe Fabri dos Anjos, para o desafio humano de superar a si mesmo em abertura ao outro, ao mundo e à transcendência. Provocado pelas questões levantadas do lugar da física, o teólogo Fernando Altemeyer recolocou a questão, refletindo sobre a natureza específica e as potencialidades da Ciência e da Teologia como servas da humanidade.

A interpelação em torno do 2º eixo foi feita pelo Prof. Hilton Japiassu, frade dominicano que falou como filósofo a partir de sua experiência na UFRJ, responsável pelas disciplinas Epistemologia e Histórica das Ciências. Professor Japiassu trabalhou “Ciência e Religião: articulação dos saberes”. Com o objetivo de repensar o religioso no contexto da atual crise da razão, começou por recuperar o percurso moderno que levou à ascensão do racionalismo moderno, ao fim do papel social da organização religiosa do mundo humano e ao posterior “retorno da Religião” como uma onda que se exprime não só por integrismos e fundamentalismos, mas pela expansão sem precedentes de práticas supersticiosas representadas, em escala internacional, por poderosas e aguerridas seitas, vindo a responder a uma necessidade real de espiritualidade num mundo impregnado de niilismo, onde desaparecem os valores e os ideais tradicionais, deixa de impor-se o regime da emancipação e domina o da crispação geradora de decepção e depressão.

Essa onda estaria, segundo ele, associada ao fato da Ciência, acreditando ter derrotado o pensamento religioso, ter forjado sua própria religião para tomar seu lugar. O racionalismo que domina a racionalidade ocidental, denuncia ele, enlouquece quando passa a pensar a Razão não somente como necessária, mas como suficiente, bastando a si mesma. O contexto contemporâneo, marcaria então, a crise da razão, o retorno o reprimido ou do recalcado, uma revanche do irracional. Neste mundo, são consagrados e enaltecidos o hedonismo e os psicologismos e se perde a Fé num futuro mudancista ou revolucionário. O que nos resta é o hedonismo individualista que, minando as instâncias tradicionais de controle social e evacuando do campo social toda a transcendência, priva os indivíduos de seus referenciais tradicionais e os mergulha num relativismo, deixando curso livre às mais extravagantes e exóticas elucubrações.

O que se pretende, segundo a perspectiva contemporânea, é construir um mundo no qual seja possível a expansão de todas as criatividades e onde possam conviver todas as pluralidades. Busca-se valorizar uma nova episteme: da indeterminação, da descontinuidade e do pluralismo, não aceitando mais nenhum tipo de dogmatismo, pois seria gerador de violência. Recusa-se os megarelatos e as grandes narrativas e defende-se os contexto locais, a heterogeneidade das formas de vida, as particularidades dos modos de ser e pensar, uma ética das circunstâncias e uma autonomia moral em relação às normas universais. A mídia, ele lembra, se converteu no elemento de uma explosão e multiplicação generalizada de visões de mundo fragmentadas. Ela hoje se vê obrigada a adotar a lógica da moda, a inscrever-se sob o registro do espetacular, do fantástico, do superficial e do fútil, valorizando a sedução e o divertimento em suas mensagens.

No plano do absoluto desaparece uma visão de mundo estruturada pela Religião (como heteronomia), mas persiste o religioso, como aspiração ao Absoluto, como busca de sentido ou como interrogação sobre a morte. O Deus do ser humano atual não é mais o Deus dos filósofos e dos sábios, nem um Deus pessoal, é uma espécie de Absoluto mistérico, energético ou cósmico, manifestando-se nas mais extravagantes experiências individuais do “conhecimento” místico, esotérico, transcendental, oculto ou religioso: no autoconhecimento. O risco aqui, ele advertiu, é a conversão do religioso num esteticismo gustativo das realidades mistéricas, energéticas, ocultas ou esotéricas, implicando a aceitação de certa idolatria ou de certo panteísmo gnosticista.

Nessas condições, segundo o Prof. Japiassu, impõe-se a questão sobre o futuro do cristianismo que necessita de uma profunda reforma e renovação da Teologia e Filosofia que lhe serve de base. O grande desafio para essas disciplinas é voltarem a conferir um estatuto plausível ao discurso sobre o Além, sobre Deus e a Fé.

Diante do grande desafio atual lançado ao pensamento que consiste, na contradição entre, de um lado, os problemas cada vez mais globais, interdependentes e planetários, e, de outro, a persistência de um modo de conhecimento privilegiando os saberes fragmentados, parcelados e compartilhados, ele concluiu, é urgente uma reforma do pensamento que deve ser orientado para a transdisciplinaridade, isto é, para uma abordagem capaz de superar o esfacelamento e a especialização dos saberes e se interrogar sobre a unidade global do conhecimento. Não podemos confiar no conhecimento fragmentado, nem na simples apreensão holística. O que precisamos é de uma outra inteligibilidade, ele afirmou, de uma inteligibilidade indo do Mesmo ao Outro sem suprimir a diferença. Uma inteligibilidade que, não tendo mais a preocupação em afirmar a própria onipotência e dominar a natureza, se ocupe, ao lado da Religião, em buscar sempre mais luz, a fim de dar um sentido a tudo e ao todo da condição humana.

Reagiram à provocação do Prof. Japiassu, o teólogo José Comblin e a teóloga Ivone Gebara. Segundo o Pe. Comblin, estamos saindo de uma época de conflito entre a Religião, ou mais propriamente a Religião cristã e a Ciência, ou mais propriamente a Ciência ocidental, conflito causado pela pretensão de ambas em se constituir como um saber, o saber total, global, básico, universal e definitivo. Hoje se sabe, afirma Comblin, que nem a Ciência e nem a Religião são saberes!

O cristianismo não é um saber, nada ensina sobre Deus, a não ser que nada se pode saber de Deus. A revelação cristã diz o que é para fazer, não diz os que Deus é, mas o que ele faz em nós. Deus manifestou-se para que os seres humanos encontrem o caminho da libertação do mal que os afligem. A Ciência, de outro lado, ponderou Comblin, também não é um saber, a Ciência é crítica incessante a todas as terias que se apresentam como saber científico, sabe agora que nunca vai saber o que é o mundo. A filosofia do século XX dedicou-se a desmontar o sonho grego de um conhecimento objetivo, absoluto, dotado de total certeza que esteve na base dos dois projetos de saber que se erigiram, um baseado na Ciência de Deus e outro fundado no método científico.

Para Comblin, portanto, o pensamento cristão mais originário fundado no seguimento de Jesus e preocupado com o anuncio e convocação à participação na construção do projeto de uma maneira de viver, não entra em contradição com a Ciência, que começou com a magia e envolveu receitas populares para melhorar a alimentação e a saúde, isto é, que tem como projeto melhorar a vida sabendo usar os recursos que estão no mundo. A universalidade, ele afirma, não existe. O que existe é a diversidade de concepções de vida em meio à qual é possível o diálogo para se chegar a certas posições aceitáveis por todos.

A teóloga Ivone Gebara chamou a atenção para a importância de se considerar os movimentos sociais ao se repensar a religião num contexto de crise da razão. Recuperou o movimento feminista e sua contribuição para crítica das estruturas filosóficas e teológicas tradicionais e para uma vivência do cristianismo fundado na vida comunitária, na partilha de experiências e no exercício do cuidado.

No que diz respeito ao terceiro eixo, Ciência, religiões e futuro do planeta: desafios para a fé, deu sua instigante contribuição, Evaristo Eduardo de Miranda que é agrônomo, doutor em >ecologia, pesquisador e chefe-geral da Embrapa Monitoramento por Satélite, tecendo uma crítica contundente ao tratamento e o enfrentamento dos desafios ambientais colocados pelo crescimento e pela sofisticação das sociedades humanas que, para ele, é essencialmente midiático. Atualmente, ele denunciou, cientistas, ambientalistas e também teólogos, na pretensão de salvar o planeta, acabam caindo na tentação de exaltar ainda mais o poder da ciência. A crise atual não ensina a humildade. A onipotência humana, afirmou ele, domina dos debates ambientalistas. O cientismo, ideologia que entende que a Ciência daria a conhecer as coisas como são e resolveria todos os problemas da humanidade, satisfazendo todas as necessidades legítimas da inteligência humana, é um fantasma que ronda os laboratórios e os centros de pesquisa.

No contexto dessa perspectiva, os discursos sobre os caminhos de salvação do planeta, ele criticou, carregam fortes doses de imobilismo e mumificação. Sob o chamado de conservação da natureza, há uma lista de desejos de imutabilidade: as florestas precisam ser mantidas como e onde estão, o nível dos oceanos não deveria variar, as geleiras também deveriam permanecer do jeito que estão, etc.. Não se leva em conta que o planeta está em constante evolução e que a dinâmica é sua marca.

A ciência e as religiões, ele afirmou, deveriam enfrentar questões incontornáveis sobre a origem e o destino do planeta e do universo, origem que não deve ser confundido com começo e fim como destino escatológico. As religiões devem retomar sua tradição milenar no que diz respeito a essa matéria. Parte da reflexão teológica atual sobre as mudanças globais deixa de lado os tesouros já elaborados sobre origem e destino da criação que são, para ele, a grande contribuição da Teologia para as Ciências. Em sua

reflexão, Evaristo, para ilustrar essa contribuição, retomou a tradição bíblica, fez referência a Santo Agostinho, Santo Tomás e Kant.

Em reação a essa provocação, tivemos a contribuição do conhecido teólogo franciscano Fr.Luis Carlos Susin e de Eva Aparecida Rezende de Moraes que é pós-graduada em matemática e doutora em Teologia pela Puc-Rio. Eva empreendeu uma reflexão, inicialmente chamando a atenção para a mudança de método nas ciências e a possibilidade de aproximação que essa nova visão da realidade da vida, que se constitui como um pensamento sistêmico, com o discurso das religiões. Hoje, a aproximação entre os discursos, ela observou, é acolhida por diversos autores, que propõem uma dialética entre mythos e logos, como método de construção de uma nova cultura.

Na perspectiva do diálogo entre ciência e fé, Eva trabalhou o tema da criação mostrando que as novas descobertas científicas que indicam a evolução, ajudam a perceber na dinâmica da natureza a intencionalidade do Criador. Do ponto de vista de uma conciliação entre criacionismo e evolucionismo, a posição aceita é a de uma epigênese, isto é, a crença em que as formas surgidas ao longo da evolução não estavam pré-formadas na matéria viva primeva, mas, antes, surgiram por transformações sucessivas, que não estavam previstas no início. Neste sentido, ao mesmo tempo em que se afirmam direções nítidas na evolução, afirma-se também uma grande liberdade. Teologicamente, pode-se dizer que a evolução da matéria está nos planos salvíficos do Criador e é parte do chamado vocacional que a criação é chamada a viver.

Nesse contexto em que a criação sofre contínua transformação (evolução), a salvação é uma situação nova das realidades deste mundo, onde o humano não somente existe, mas existe verdadeiramente. Para a tradição cristã isso significa ressurreição do corpo ou transformação do corpo no que Paulo chamou de “corpo espiritual”, livre dos limites finitos. A salvação também implica uma ética da responsabilidade, isto é, uma ação pela transformação do mundo em corpo de Deus, uma luta contra a dissolução do corpo empreendida pela sociedade contemporânea.

Enfim, afirmou Eva, o diálogo entre teologia e ciência deve favorecer uma ética a favor da vida e da dignidade humana. Sua proposta foi na direção de um diálogo educativo capaz de ajudar a distinguir a ciência e as religiões das ideologias que delas acabam derivando. Na base das pesquisas científicas e das respostas religiosas está o ser humano que deve ser educado em suas tentativas, seus acertos e erros, enquanto não é o que é chamado a ser, enquanto não se realiza essencialmente. E essa vocação essencial, ela concluiu, implica também uma relação de unidade com a natureza para em direção ao paraíso, destino escatológico da criação.

Uma síntese final foi feita pelo teólogo João Baptista Libânio. Síntese que ele concluiu deixando duas questões que resumem as discussões. A primeira diz respeito ao diálogo entre as religiões, a fé e a ciência através do recurso à transdisciplinaridade, pensamento que se situa ente o fragmento e a globalização, grande desafio para o conhecimento na atualidade. Cabe aqui às religiões, ele ressaltou, se ocupar das questões últimas, das causas primeiras e dos fins derradeiros. E ao cristianismo, essa é a segunda questão, nesse contexto, qual é o seu futuro? Continuar pela via da adesão livre e das convicções pessoais elaboradas conscientemente buscando uma profunda reforma e renovação da teologia e da filosofia que lhe serve de base. O cristianismo encontrará novo vigor pela volta à sua fonte original, o Jesus histórico.

Além das grandes conferências foi importante também no 22° Congresso da Soter, a realização de grupos de trabalhos com grande diversidade de temáticas e muitas comunicações apresentadas. Foram trabalhados pelos GTs o tema da relação entre religião e educação (questões relacionadas ao ensino religioso); da Bíblia e suas leituras, orante, literária, popular e científica; da relação entre teologia, universidade e sociedade; entre literatura, arte e religião; e entre gênero e religião. Houve também grupos que abordaram as teologias reformadas, as religiões de ascendência africana e indígena, os novos movimentos religiosos, o pluralismo, a interculturalidade, a mística, o cristianismo (história e contemporaneidade), a filosofia da religião. Essa diversidade mostra, certamente, a vitalidade Sociedade de Teologia e das Ciências da Religião em seu esforço de enfrentar com coragem, a cada ano, novos desafios.